terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Canção de ninar II

Às preliminares que antecedem por tradição o sono, lavar bocas e mãos, beber água, cheirar alecrim ou lírio, convém adicionar, em períodos de angústia severa, estimulantes fisiológicos sonoros a fim de manter os sinais vitais ativos. Uma idéia é ressuscitar o samba sem patentes dos Cariris nordestinos e dar boas vindas à madrugada. Esse exercício induz a um transe onírico que pode conduzir o sonhador à sensação de possuir um “corpo sem órgãos”. Há casos de pessoas que batem palmas dormindo sem deixar de sorrir, que põem órgãos internos a dançar como maré enchente ou passam a perceber movimentos circulatórios na luz lunar. Recomendável em fevereiro.

Canções de ninar para compor pesadelos I

Composição para dois pares de pés, um cinzeiro e uma rede ou o roçar de pés deslizando sobre cimento em dó maior.

Se palavras mal equilibradas se amontoam qual fumaça na alvenaria da madrugada e toda a algazarra dos transportes privados e coletivos dão lugar ao esforço de subir um degrau de silêncio enquanto dormem os bebês, o indicado é: permanecer semi-desperto em algum esconderijo humano confiável ou nunca mais as palavras. A garganta, caso o sono seja escolhido e o despertar ignorado, apronta-se a secar e, não raro, pode-se escutar as tosses mais ou menos ritmadas a pelo menos duzentos metros de distância (pela esquerda, seguindo-se o som, alcançaríamos um engasgo de tosse a confundir-se com o atrito das rodas de um carro cauteloso a contornar, sem algazarra, um amontoado de casas aparentemente vazias e uns tantos outros ruídos menos interessantes. Nessas ocasiões recomenda-se dormir em companhia abundante (uma pessoa em cada quarto, duas pessoas em um quarto com toalha e tevê, acender uma lâmpada na varanda, janelas abertas se não há sequer um alguém e uma infinidade de outras configurações úteis) pois o engasgo escutado de perto pode afetar em certas noites de verão o mecanismo auditivo humano responsável pela atribuição de sentidos às palavras faladas. Esta canção pretende simular o silêncio derradeiro ocasionado pelo embaralhamento dos sentidos da seguinte forma: Sucessão de pratos quase aleatórios, como em uma parada urbana, e o trompete simulando a famosíssima ode argentina “verano fatal”.